As vidas do outro lado do mundo
Há dias em que me sinto dentro de um poço. Vejo e ouço as pessoas à minha volta e no entanto há um muro a separar-me delas. Cada palavra pesa toneladas, sorrir é um cansaço e a luz um esforço demasiado. Anseio pela escuridão, pelo recato e silêncio da solidão.
Sempre sofri de intolerância à luz. Os olhos choram-me constantemente. A pele enche-se de pintas vermelhas. Às vezes tenho dificuldade em respirar, como se o ar tivesse receio de se aventurar no interior do meu peito. Os outros incomodam-me, fazem demasiadas perguntas e tecem comentários sem que ninguém lhes tenha pedido a opinião. Eu, a maior parte das vezes, fico calado. As palavras deviam pesar na garganta e exigir algum esforço para serem ditas. Poupar-se-iam muitas desavenças e, sobretudo, futilidades.
Conversar provoca-me sono. As mais das vezes, nada há a dizer; contudo, ainda assim, insiste-se na comunicação. Hoje em dia, porém, já não se pratica o diálogo; cada um tece longos monólogos, que vai desfiando na presença de um interlocutor. Acrescentam-se gestos de entendimento, sorrisos de ocasião, olhares de cumplicidade, dois beijinhos ou um aperto de mão. Mais tarde, ao tentar recordar a conversa, só encontraremos as nossas próprias palavras; as do outro irremediavelmente esquecidas, desprezadas.
A solidão é uma catedral íntima, um recanto de oração. Sonho com a morte, com o seu beijo cadavérico, o gosto putrefacto da sua boca. Vejo-lhe a mão numa última carícia de mãe; os dedos calejados e frios; a pele enrugada de dias por nascer. Gostava de morrer no mar: as algas e o oceano o meu caixão moribundo, as enseadas distantes para sempre ausentes nas minhas pálpebras fechadas. Deito-me na morte para assim renascer do outro lado do mundo, onde a música respira por baixo da areia e vem à superfície no som dos búzios. Talvez encontre a silhueta do meu pai à beira-mar e possa enfim devolver-lhe as notas musicais que fui colhendo ao longo da vida, como o rio que regressa ao mar de onde nasceu.
© Gabriela Ruivo Trindade