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O fado de se chamar Ernesto


Quando o conheci, Ernesto estava internado há cinco semanas. Contou-me o estranho episódio da sua detenção, dias antes de ter dado entrada aqui no hospital. Por essa altura, Ernesto passava as tardes na biblioteca da Universidade onde leccionava, ocupado a preparar a sua tese de doutoramento. Aconteceu-lhe, então, algo peculiar: de um momento para o outro, deixou de conseguir ler o que quer que fosse. Desesperado, olhava as páginas dos livros, onde as letras subitamente configuravam caracteres incompreensíveis. Era como se estivesse a tentar decifrar uma língua desconhecida.

Depois de dar voltas à cabeça, instintivamente e sem disso se aperceber, começou também a dar voltas ao livro que tinha nas mãos. Foi quando aconteceu uma coisa extraordinária: assim que o livro ficou de pernas para o ar, voltou a ser capaz de descodificar os símbolos. O problema tinha, assim parecia, uma solução simples: bastava ler os livros ao contrário!

Ernesto assim fez. Não teria decorrido nem meia hora quando começou a sentir o olhar das outras pessoas espiando-o sorrateiramente. Primeiro foi a bibliotecária que passou por ali várias vezes, e de todas as vezes ele sentia (ou acreditava sentir) a picada do seu olhar de viés. Depois, aos poucos, as mesas à sua volta encheram-se de gente que apenas fingia ler, pois na verdade todos o observavam pelo canto do olho. Incomodado, pensava em abandonar o local quando dois polícias entraram e se dirigiram à sua mesa.

O que está você a fazer?, perguntou o polícia mais novo.

A ler..., balbuciou.

E porque tem o livro ao contrário?

Ernesto não soube o que dizer.

O senhor está preso. Queira acompanhar-nos.

Como?

Se resistir, será pior para si.

Mas preso porquê?

Não sabe que está a cometer um acto ilegal? Os livros não podem ser lidos em posição inversa. Isso dá azo a interpretações subversivas da realidade.

Ernesto foi detido nesse mesmo dia e, segundo me contou, submetido a interrogatórios intermináveis. Os inspectores queriam saber que palavras encontrava ele nos livros, e insistiam que estas seriam forçosamente diferentes das que constavam das páginas lidas na posição correcta. Haveria uma mensagem oculta que era revelada quando se invertia a posição da leitura, e era essa mensagem que procuravam arrancar a Ernesto, ainda que este insistisse que tal ideia não passava de um engano. Os polícias insistiam também para que Ernesto revelasse o nome das pessoas que o haviam iniciado na prática da leitura subversiva. Ernesto não sabia o que dizer. Os interrogatórios prolongaram-se durante horas, com recurso a medidas extremas de privação de sono e choques eléctricos.

Ernesto mostrava-me os pulsos onde, segundo ele, estariam as marcas provocadas pelas descargas. A pele, no entanto, permanecia limpa, sem quaisquer vestígios. Ernesto prosseguia o relato. Graças aos médicos da unidade hospitalar onde nos encontrávamos, havia sido, finalmente, resgatado àquele inferno. E aqui estava ele, a salvo. Só não compreendia porque não lhe devolviam os livros que tanta falta lhe faziam para concluir a sua tese.

Assim que tive oportunidade, perguntei ao psiquiatra de serviço a razão para tal. O tipo olhou-me demoradamente antes de responder com outra pergunta:

Há quanto tempo trabalha aqui?

Três meses, porquê?

Não se iluda, minha cara. Nada do que esse doente diz pode ser levado em conta. A produção delirante é permanente e resiste à medicação.

De qualquer maneira, que mal podem fazer uns livros?

Acelerar o delírio, potenciá-lo. Já imaginou se o homem pega em Nietzsche?

Foi assim que passei à clandestinidade e comecei a transportar livros escondidos dentro da mala de trabalho, que passava a Ernesto e que este enfiava debaixo do colchão. O conteúdo do seu discurso tornou-se mais expressivo e eloquente; mais bizarro, em certa medida, tal como previra o psiquiatra.

Um dia Ernesto pediu-me que lhe levasse Em Busca do Tempo Perdido, na versão francesa. Quando lhe fiz notar que seria impossível esconder um livro com tal dimensão, explicou-me que existia uma edição em sete volumes. O nosso acordo consistia na devolução dos livros à medida que iam sendo lidos, de modo a que nunca guardasse mais do que um debaixo da enxerga, pelo que adicionar os sete volumes da colectânea ao rol das suas leituras não levantaria problemas. Prometi que iria procurá-los. Então ele contou-me que o pai, que se chamava Ernesto como ele, um dia saíra de casa, como sempre acontecia, para ir trabalhar e não voltara. Sumira-se no mundo. Na véspera, Ernesto vira o pai arrumar os sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido numa mala de cartão. Os mesmos que me pedia, agora.

Acho que o meu pai se perdeu naqueles livros. Ele tinha um problema, sabe, quando começava a ler um livro não conseguia parar. Bem que tentava disfarçar; às vezes tínhamos visitas e lá estava ele à mesa, a rir e a conversar, e vai-se a ver tinha o livro pousado no colo, como se fosse um guardanapo, está a ver? Ninguém notava mas eu reparava nos olhos dele a caírem para baixo, a fixarem-se na página. Apenas segundos, aqui e ali. Não sei como conseguia. Outras vezes, durante as conversas com a minha mãe, lá estava o livro escondido entre o braço dele e o sofá. Era incrível.

Confessou-me que alimentava a esperança de encontrar o pai nas páginas da obra de Proust. Vê-lo uma última vez. Saber o que lhe acontecera. Poder dizer-lhe tudo aquilo que gostaria de ter-lhe dito e nunca tivera oportunidade.

E está preparado para o que ele tiver para lhe dizer a si?

Isso não sei.

Contou-me ainda que o pai herdara do seu próprio pai, além do nome Ernesto, a capacidade de ouvir coisas inanimadas. O avô, com quem também partilhava o nome, possuía o dom de escutar melodias vindas das profundezas da terra. A avó de Ernesto, mãe do seu pai, afogara-se no mar tinha o pequeno apenas sete anos. O avô de Ernesto explicara, então, ao filho, que as almas das pessoas que morrem no mar ficam presas na areia e cantam em surdina os seus fados; é essa a música que se escuta debaixo dos pés, à beira mar. O pai de Ernesto chegara a sonhar com a morte no mar; uma forma de diluir a dor que a solidão lhe causava, a dor de não mais encontrar lugar no mundo depois da perda da mãe.

Está a falar do seu pai ou de si, Ernesto? No seu processo consta que a sua mãe se suicidou por afogamento. Aconteceu o mesmo com a sua avó paterna, foi isso?

Ernesto encolhera os ombros perante a minha pergunta.

No fim de contas, somos todos Ernestos, não é verdade?

No dia em que lhe entreguei o primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, Du Côté De Chez Swann, Ernesto sorriu delicadamente e agradeceu. Passou a sessão a agradecer-me. Desejou-me felicidades. Só no dia seguinte, quando ele desapareceu e não foi possível encontrá-lo, é que me apercebi de que aquilo fora uma despedida.

O livro ficara em cima da cama. Folheei-o na expectativa de nele encontrar alguma pista acerca do possível paradeiro de Ernesto. O psiquiatra de serviço apareceu à porta e encarou-me.

Como explica isto?

Não tenho nenhuma explicação.

Vai dizer-me que não tem nada a ver com isto?

Isto o quê?

Tirou-me o livro da mão com delicadeza e ergueu-o ligeiramente na minha direcção. Indaguei:

Acha que esse livro tem alguma coisa a ver com a desaparecimento do doente?

Não sei. Diga-me você.

Ergui as sobrancelhas e fixei-o durante segundos. De seguida abandonei o quarto, deixando-o ali especado, de livro na mão. Ao passar, pareceu-me ouvir, nítida, uma serena melodia vinda de muito longe. Harpas, violinos, as notas de um piano.

© Gabriela Ruivo Trindade

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