Porto de Abrigo
Acontecia cada vez mais frequentemente. Ernesto embrenhava-se de tal forma na leitura que o mundo à sua volta perdia os contornos. O tempo para ler era pouco, pelo que aproveitava a viagem de comboio na ida para o trabalho. Algo de insólito, então, acontecia: enquanto não alcançasse a última página era incapaz de fechar o livro. Geralmente não era o único leitor na carruagem; os outros, porém, em chegando a estação onde tinham de sair, guardavam o volume na mala, ou debaixo do braço, e lá iam à sua vida. Já ele não dava, sequer, pelo passar das estações.
A situação agravou-se e Ernesto acabou por perder o emprego. Procurara controlar-se, lendo livros cada vez mais pequenos, numa tentativa desesperada de coser o tempo de leitura à duração exacta da viagem entre West Croydon (onde residia) e Kentish Town (onde saía). A margem de erro dos seus cálculos, contudo, deitaria tudo a perder, quando o patrão perdeu a paciência depois de duas semanas consecutivas de atrasos, ainda que estes fossem menos significativos de dia para dia.
Na manhã seguinte apanhou o comboio à hora habitual. Não contara à mulher do despedimento. Dentro de uma mala levava os sete volumes de Em Busca Do Tempo Perdido, na versão original. Quando lia livros mais volumosos era usual o comboio chegar à última paragem e retomar a marcha em sentido inverso sem que ele se apercebesse; tão-pouco os guardas de serviço o identificavam, como se ele, uma vez dentro do livro, adquirisse uma certa imaterialidade que o tornasse invisível. Terminado um volume, saía na paragem seguinte, mudava de linha, e iniciava o próximo.
Ao fim de Le Temps Retrouvé, apesar de exausto e esfomeado, sentiu-se mais vivo do que nunca. Não saberia dizer se haviam passado semanas, dias ou apenas horas. Encontrava-se na estação de Notting Hill Gate. Ao sair sentiu-se ofuscado pela luz. Esta parecia varrer, sem piedade, os recantos obscuros onde a sua mente ainda repousava, embrenhada nas palavras de Proust. Andou ao acaso até que reparou num café com o nome de Estrela de Portugal. Entrou. Deu os bons dias em português. O homem do lado de lá do balcão respondeu na mesma língua e perguntou o que ia ser. Pediu uma bica e sentou-se. O balcão envidraçado mostrava pastéis de nata, pães de deus e outras delícias da doçaria tradicional. Nas prateleiras viam-se garrafas de vinho da região do Douro e Reguengos. Do tecto pendiam chouriços, paios, morcelas e farinheiras. O empregado trouxe o café.
Onde estou?, murmurou incrédulo. Era uma pergunta retórica, mas o outro não percebeu.
Em casa, amigo.
© Gabriela Ruivo Trindade