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Restos (i)mortais


Olha nós, tão felizes. Felizes? O casamento é uma grande treta. Sabes quando sonhas com isso desde sempre? Encontrar a cara-metade, o grande amor? Como se o amor fosse o oxigénio? Como é possível uma pessoa anular-se dessa maneira? Planeias a tua vida ao milímetro; as fotografias que ficarão para a posteridade, o sorriso que te desenhará a boca, o brilho nos olhos, o cabelo ao vento. Um dia, no entanto, apaixonas-te, e sentes que vai ser tudo ao contrário, que afinal os planos não serviram para nada; e, todavia, deslumbras-te quando começas a perceber que estás a viver tudo o que sonhaste. Assim, por acaso, calhou-te na rifa o homem maravilhoso que sempre desejaste. O amor sempre é mágico. Vives num sonho. Até que uma manhã acordas e as costas doem. As pernas, os braços, os pés inchados, as articulações, tudo grita. Olhas-te ao espelho e não te reconheces. És outra. Fizeste um esforço demasiado para te encaixares no quadro, para caberes nos vestidos, para que os sorrisos não descaíssem; um esforço inumano. Enquanto os teus pés se contorciam dentro dos sapatos apertados, tu riste e continuaste a dançar, indiferente ao protesto dos calos, à dor nos joanetes. Ignoraste o uivo do animal enjaulado dentro de ti; na verdade era apenas um coelhito assustado, arfando de exaustão.

O Ernesto era uma boa alma. Delicado. Perfeito. Nunca gritava, nunca se exaltava; estava sempre de bem com o mundo. Perdia-se nos livros. Andava sempre com um no bolso, que ia lendo nas ocasiões mais inusitadas. Às vezes acontecia estarmos na cama e eu tinha a sensação de que ele continuava a ler, o olhar enviesado, fixo num ponto para lá do meu. Vinha-se sem aparato, contido, em silêncio, os olhos fechados, e ainda assim eu imaginava-o perdido num qualquer parágrafo dramático. Eu queria-lhe os olhos abertos, lendo o meu corpo; sentir-lhe os dedos trémulos da emoção de me tocarem; travar-lhe o prazer para que durasse, crescesse, nos roubasse o fôlego. Ele, porém, esvaziava-se de mim e dele mesmo; sucumbia, abandonado na areia, escutando as vozes distantes de fados antigos.

Quando dormia, padecia de pesadelos constantes. Dizia que penava em sonhos o que o pai sofrera na guerra. Agitava-se, gemia, alucinava. Eu ficava junto dele, tentando acalmá-lo, enquanto pensava que, ao menos ali, no terror dos pesadelos, ele vivia o que, acordado, não ousava.

Estes pensamentos assombravam-me a consciência. Eu era esposa, acima de tudo. Fora educada para dar sem nunca exigir. Girava à volta dessa ideia, desse edifício, que era o alicerce da minha felicidade.

Quando o nosso filho nasceu, o meu marido quis chamá-lo de Ernesto. Eu queria uma menina, não me importei com o nome. Durante a gravidez sentira-me cheia de qualquer coisa que desconhecia; uma força oculta que me impedia de esmorecer. Transportava em mim uma vida, uma nova vida, e várias vezes imaginei que era a minha própria vida que se renovava no meu ventre. As mães são naturalmente possessivas. Os filhos deixam raízes. Por mais que o neguemos, não queremos deixá-los ir. O nascimento é doloroso porque nos rasga ao meio; arranca-nos o melhor de nós. O ser amorfo que nos colocam no peito, contudo, já pouco tem do peixe que nadava cá dentro, num oceano de quietude. É um ser exigente e déspota: grita, berra, suga-nos o leite e o calor. Alimenta-se das nossas forças e vitalidade, exigindo constantemente o que não temos para dar. Afoga-nos nas nossas próprias lágrimas de desespero, quando fingimos que é de emoção que choramos. Rouba-nos a vontade de rir e de sonhar, uma vez que nos afasta de quem éramos quando ainda podíamos rir e sonhar sem limites.

Chamar ao nosso filho o nome do nosso marido é desconcertante, perverso e obsceno. Como pude concordar com uma coisa assim? Há casamentos que nos divorciam de nós mesmas. O meu foi um deles.

Sabes aquela frase, ninguém aguenta? Pois eu aguento tudo. Parece que não tem fundo, o poço que me engole, e à capacidade de dizer não, de me defender, de me assumir como sou, entendes? E o que sinto e não sinto; o direito à existência; a minha própria voz, em suma. Atiro tudo isso para o fundo de um poço e vou dizendo que sim, sorrindo, estendendo as mãos, os braços, as pernas, as duas faces, que entretanto já nem sentem as bofetadas. Podem fazer de mim o que quiserem e para tal bastam umas migalhas. Não te rias, estou a falar a sério. Nem imaginas a vergonha, a humilhação que é dizer isto em voz alta. E que diferença faz, afinal, que o diga em voz alta? A eterna vaidade dos tristes; o facto de acharem que, se taparem as nódoas, disfarçarem as marcas e conterem o pranto, ninguém nota; e como tal, é como se não existisse: o pântano em que se afundam. Eu, todavia, conheço-lhe o cheiro a enxofre, o fundo movediço e lamacento, sôfrego de vitalidade e luz. Sou uma náufraga tentando a todo o custo manter-se à tona pelas aparências. Se soubesses como às vezes tenho ganas de mandar tudo à merda! Eu, o casamento, a família, a minha vida, tudo para o raio-que-os-parta! Afogar-me no mar. Imagino um areal a perder de vista; águas límpidas, transparentes; a luz morna do sol a cair sobre o mar quieto como um espelho. Meia dúzia de palavras riscadas na areia: a lápide perfeita. E depois da maré cheia nada restaria, apenas a lua espelhada nas águas, quando por fim anoitecesse.

© Gabriela Ruivo Trindade

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